Thursday, November 02, 2006

2 de novembro

Sempre fora prático na vida, não seria na morte que abandonaria tal costume. Entretanto, perculiarmente, acordou cedo naquela manhã do dia 2 de novembro. Bebeu água, sentou-se na cadeira da cozinha com falta de ar. Essa dorzinha sempre voltando, pensava enquanto massageava o peito. Olhava para o relógio, hora de tomar o remédio. Foi até a mesinha da sala e pegou a caixa de remédios ao lado da foto de Anita. Ela sempre fora a filha preferida. Engoliu duas cápsula e voltou a cadeira.

Não obstante às dificuldades de toda a vida, a morte sempre insistia em bater a porta. Nessa batalha de vida e morte, o que se podia pensar eram nas perdas e nos ganhos. Perdi mais do que ganhei, o pensamento era por si só pessimista, mas a constatação era racional e real. a praticidade era absurda. Para que tomar banho em dias em que você não sai de casa? A pergunta aparentemente anti-higiênica era apenas um dos axiomas de sua vida. O gosto por doces e açúcar era notório e o hábito de comê-los todos os dias era permanente. Para tudo se tem remédio, até que o maior deles chegue. A vida é prática, a vida é assim, o comprimido da farmácia é a falácia da esquina, metáfora de que a vida sempre vai dar certo, de que ela segue o caminho, que uma hora as coisas se ajeitam. Sem querer ser muito niilista, bebeu água junto com os drops apenas porque aquilo ajudava no deslizamento goela abaixo, tão prático como toda a vida.

A respiração era aguda e a postura na cadeira obtusa. A efizema agitava cada parte de seus pulmões deteriorados pelo cigarro. Fumo sim e daí, o Japão é o país onde mais as pessoas fumam, sendo que lá a espectativa de vida é altíssima. Não há teorema que prove os riscos de cigarro para a saúde; embora o fato seja verdadeiro, a praticidade de se fumar e tomar café logo depois pode custar caro. Após engolir as cápsulas, beber água e se sentar, pensou em fumar. Os cigarros estavam longe, não tinha fôlego para chegar novamente até a mesinha da sala. Mas o gosto de anos de nicotina na boca fazia a vontade aumentar. Talvez seja essa a praticidade que as indústrias de cigarro enxergam: o seu pulmão é nosso lucro.

Apesar da dor tamanha que consumia o peito, tentava se ajeitar a todo instante, mas não havia posição que o saciasse naquela efêmera hora do dia. As manhãs são inúteis, portanto, o melhor é usá-las para dormir, e logo, ele sempre dormira pelas manhãs. Era extremamente prático acordar um pouco antes do meio-dia e almoçar. Há um ditado que diz que a primeira refeição do dia é a mais importante, todos nós sabemos que é no almoço que mais comemos. Portanto, a coisa mais lógica a se fazer é acordar e posteriormente almoçar. Era isso que fazia, menos naquele maldito dia 2 de novembro, que o fizera acordar cedo para tomar as cápsulas, beber água, se sentar, ter vontade de fumar, ficar sem lugar e agora esperar as trombetas dos anjos do além. O relógio tocava veementemente como se quisesse fazer o papel das trombetas. O jeito era aceitar aquilo tudo.

Os ponteiros apresentavam o terrivel horário de 7:23. Lembrou-se de uma poesia de Baudelaire, de como nós nos alimentamos de nossos remorsos, assim como os mendigos nutrem seus vermes. Fechou os olhos antes de ver o ponteiro caminhar para 7:25. Naquele intervalo fugaz, a morte foi mais rápida que a vida. Como gostava de movimento, encontrou o cemitério cheio naquele dia, nada mais prático que isso.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Cortante... a morte costuma desconsertar qualquer acerto, ainda que patético ou recheado de utopia. Vem e não se importa com sensibilidades...

November 03, 2006 7:12 PM  

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