Sentido opaco
Acordou como sempre fazia, olhou-se no espelho e notou que estava fora do mundo. Mas como fora do mundo? Isso mesmo, fora do mundo, sentia-se não pertencente, alçava vôo no desconhecido, ou ele próprio passava a ser o desconexo. Como se o tempo, inexorável e cruel, o tivesse afastado de tudo, de todos. Mexeu no espelho, em vão. Deu uma voltinha e retornou correndo, a imagem era vazia. Encolheu-se no canto e colocou a mão em fronte ao vidro refletor, que não permitiu uma reflexão sequer. Ao esperar uma luz, um cenário imagético, a procura de uma reflexão, refletiu o quanto aquilo poderia auxiliá-lo. Passou a gostar da idéia, idealizava situações e proporções de seus atos. De repente se viu herói, adorou os poderes que agora lhe eram conferidos, podia qualquer coisa a qualquer momento. Mal sabia como começar. Resolveu começar do início. Mas começo de quê? Já estava acordado há quase uma hora, naquele estado, e o máximo que conseguira até o momento fora um monólogo besta com um espelho. Aliás, espelho que nem representá-lo conseguia. Se bem que ele não queria ser representado mesmo. Pensava em como seria a vida agora, sem os problemas do escritório, sem ter que discutir com a mulher ou montar toda aquela parafernália de jogos das crianças. Só de imaginar já era garantia de prazer. Hercúleo, show man, todo poderoso. Olhou pela janela e sentiu pena das pessoas que passavam na rua, pobres mortais. Uma senhora que tropeçava em si mesma, dois velhos jogando dama na praça, a monotonia em sua plenitude, o casal de namorados brigando na esquina, o caminhão de lixo com homens gritando gravemente a sua passagem, a grávida com uma sacola de compras, sem que viv'alma a ajudasse. Como era bom não existir, ser nulo. Sempre pensara que ser um zero a esquerda era o mesmo que loser. Pelo contrário, era um grande barato. Foi até a sala, a mulher não o percebeu. O regozijo veio logo em seguida. Fez barulho e nada. Graça divina ou seria ele um semi-deus? Calma, calma, se bem que... Melhor pensar em outra coisa, pequeno deus. Os pensamentos megalomaníacos se fundiram em um sorriso monumental. Riu alto, gargalhou, rolou no chão. Parou, viu que muito tempo se passara e ele ainda estava em frente ao espelho. O cachorro veio em sua direção. Será que havia se desfeito aquela sua "não-existência". O totó mudou o rumo e foi até o sofá, onde guardou um osso. De quebra descobrira as diabruras do canino. Melhor sair de casa, ver como as coisas funcionavam lá em baixo. A cada passo, uma nova experiência, andava sem preocupações, sem horário. Percebeu que o tempo para ele perdera o sentido. Viu que as pessoas não o enxergavam, nem mesmo sabiam o seu nome. Como saberiam seu nome se ele mal existe? Parou. Olhou para os lados em sinal de desespero. Foi acometido por uma amargura repentina. O descontrole emocional era iminente. Olhou para cima, para os lados, para as árvores. Nada. Na verdade, ele era o nada. O vazio tomou conta de seu ser. Sentiu saudades de tudo que perdera ao se olhar no espelho pela manhã, quis quebrá-lo, desejou ser reconhecido, começou a gritar, se jogou na grama, rolou no asfalto, se atirou na frente dos carros. Os transeuntes seguiam suas vidas. Não teve a dignidade nem de ser atropelado (como se isso fosse possível). A sensação era de terror. A pequenez era enorme. sentiu-se uma barata, mas lembrou-se que as baratas caminham pelos encanamentos, estão em todo lugar, causam transtorno. Ele não causa coisa alguma. Caminhou até um banco da praça e lá se sentou. As crianças estavam eufóricas em suas bicicletas. Invejou-as. Em certo momento, a chuva. As gotas caindo junto às lágrimas. Envolveu-se na atmosfera. Agora novo sentido? Talvez. A medida que a água caía, ele notava a quantidade dela que transboradava dos céus. Foi engolido por ela, seguiu o rumo das águas. Voltou a sentir-se um pouco antes de descer pelo canal do esgoto.
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