A eterna dúvida
"Pepsi-cola", olhando para o gato, para o peixe. "Pepsi-cola, e se possível, põe chantilly também, pra ver se dá certo, se fica bom, como se tudo fosse resumido a misturas e pseudo-vontades de ir além mar". Isso tudo olhando pela janela, o mar imenso à frente, a contemplação do infinito, a parcimônia dos deuses. Os centavos das pizzas da vida toda comprariam um campinho qualquer, poderia jogar futebol, fazer um gol, ser o artilheiro do
nada.
Toca a campaínha uma, duas, três vezes, um som que adentra o ouvido médio, cruza o martelo e a bigorna. Ah claro, a velha bigorna, treme, traz solavancos burocraticamente filosóficos. Corpo inerte. Ouve-se apenas o ritmo lisonjeiro de um coração que a última coisa que quer ser é lisonjeiro. "Para o inferno lisonjeiro, pro diabo que carregue". Tudo parado.Parado.
Solto.
Morto.
"A porcaria dessa campaínha não pára de tocar um minuto, puta que pariu!!"
"Olha o respeito, moleque!"
"Respeito o caralho! E abaixa essa porra de televisão!"
Como se o mundo fosse salvo apenas pelo simples fato de um mísero controle remoto em um remoto segundo pudesse exercer tamanha diferença no ritmo da vida. "Isso cansa meus ouvidos, pelo amor de Deus, que droga de campaínha". Inerte. Isso, eu disse INERTE. deu pra entender, malandro?
Silêncio. Taciturno.
Bêbado?
Talvez, mas isso não interessa. O que interessa é saber o que fazer com o dinheiro.
"É grana boa, cara. Money, l'argent, tutu." Disse isso ontem e foi tão boçal ele falando argent, com um sotaque suburbano de quem acha bonito falar uma palavra em francês.
Veio a pizza. Deu uma quantidade cédulas. Troco. Vai até a janela para conferir se o entregador caiu fora. Caiu. 'Pizza horrosa, borracha pura."
Agora fica pensando ai, olhando o mar, paradão, sem saber o que fazer. A grana espalhada na mesa. Até as moedinhas (pode rir se for o seu desejo, até as moedinhas!, francamente)
Os carros circulam pela orla, luzes noturnas, luzes de cinema, como se tudo estivesse a 24 quadros por segundo. "Cala a boca, mané, pensa que isso aqui é cinema". A dúvida persiste se foi um pensamento ou se de fato houve a ofensa verbalizada. Deixa para lá, o sujeito nem se mexe. Lá embaixo a criançada chuta uma bola já carcumida pelos vários rodopios que dera por entre traves e redes. Rolou demais nessa vida. Todo mundo rola, ela rola também. E é nesse exato instante que um garoto franzino, canela seca, pega a bola e dribla dois, acerta a esfera com os três dedos menores do pé esquerdo, parabólica trajetória, o gomo lateral trisca a trave e a pelota de couro adentra a rede. Tudo muito efêmero, mas na cabeça fáustica dele mais parecia slow motion. E apesar de tudo, estático. Extático. Sintático e sintético. Soa meticulosamente a campaínha.
"Que porra, meu Deus" Deus? Isso mesmo, Deus? Até ontem mesmo era ateu. Jurava, por nosso Senhor, que não acreditava em Santidades, Divindades, Clero. Ficava falando em clero sem conhecimento algum. Falava clero porque achava bonito, suntuoso. Suntuoso! A vontade de rir é deveras inevitável.
Enquanto imaginava os gols que nunca fez, a campaínha seguia seu curso enlouquecido. Esguelava! BERRAVA! Dá para imaginar o quanto era isso. Uma manada de búfalos enraivecidos seria mais pacífica do que aquela eloquente campaínha em se tratando de objetivos e convicção.
"Bukowski?!" Outrora o pai gritando e arrancando o livro de sua mão. Fato marcante. E a grana em cima da mesa, putz, parado, contemplativo. Os olhos marejados. Ah, sim, claro, marejados, era só o que faltava. Que patético! Que bonitinho! Os olhinhos cheios de lágrimas. E é claro, a campaínha, sempre vicejante. Se acaba, mas acha que triunfa.
"Maiakovski!" Está aí, Maiakovski pode ler. Querer entender o mundo é o mesmo que desfrutar da permanente dúvida, com a certeza de que, transitória ou não, nada padece. Melhor procurar um canto qualquer.
Os cães perambulam pelas ruas, mendigos da nossa estirpe são corroídos nas esquinas. No passado o pai trouxera Shakespeare, colocou tudo sobre a esvrivaninha de mogno e aquilo foi devorado como os leões destroçam um pobre gnu. Ele poderia ser o gnu naquela janela de frente para o oceano. Mas sempre falta um leão. Estão em falta no mercado. "Procura-se leão faminto, paga-se bem, com carteira assinada", mas ainda não houve respostas, talvez um out-door seja mais funcional.
Toca a contumaz campaínha. Tocam Bach na vizinhança. Traz uma certa benção ao coração. Bach é quase a significação de que Deus talvez exista. E que vai discordar, Nietzsche? O que melhor, acreditar em Deus ou em Nietzsche? Entre um e outro, viro de vez aquele copo refrescante de cicuta. Bebe, Sócrates, bebe! Todos sorvendo o líquido ao som de Ataulpho Alves. Acredite se quiser, Ataulpho Alves. A mesa repleta de pão e cicuta. Sentados estão 13 bem vestidos homens. Ao som da CAMPAÍNHA, todos repartem o pão e buscam até a última gota de cicuta do cálice.
"Eta campaínha indecente!"
"Ó o palavrão aí, cambada"
"Cambada é o escambau, cai dentro, cai dentro"
O que se via era menino correndo de um lado para o outro e a bola jogada ao pé da trave. Os mendigos saboreando a desgraça alheia. Ajudava a esquecer a própria desgraça.
"Platão!" O pai sorria e o resto ria. Pode rir também, Platão não para o seu bico, rapaz. Nem Platão, nem Shakespeare, nem Tolstói, Gógol, nem cacete algum. Nasceu para ser gauche, ser trem à toa, carniceiro. Vai tentar vender a alma, vai! Sei que colocou nos classificados do JB. Somente a resposta de uma velhinha que perdera o marido há nove anos e estava em busca de alguém que pudesse ler versículos bíblicos durante a noite. Mas isso é assaz abrangente para uma pessoa passiva e estática como esse que pode-se ver ao pé de uma janela já arrebentada pelos cupins. Pobre sacripanta, biltre, forma animalesca de se comer, ratazana.
A campaínha já sem sua capacidade maior de gritar, sussurra. Passos lentos, ranger da porta, olhar mórbido para o corredor. Não havia ninguém nesse tempo todo.
1 Comments:
Muito bom! Passagens muito interessantes.
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