A mão
Em seu walk man da década de noventa corria pelo quarteirão enquanto ouvia Cole Porter. Cada passo um turbilhão no concreto sublime por onde poderia passar uma manada. Ninguém o seguraria, exceto sua própria visão. Sim, percebera de longe algo estranho jogado no asfalto quente. Conduzido pelo walk man o homem caminhou até o local onde se encontrava aquele pedaço. Olhou inquieto, fez cara de ânsia, depois de vômito, depois de nojo, depois de questionamento e depois...já encostava um dedo indicador da mão direita na mão esquerda deixada ali aos cuidados do vento. Um monte de carne que ainda possuía todos os dedos, pele amarela pela falta de circulação sanguínea, alguns pêlos loiros escorridos pelos dedos pálidos, dedos magros com unhas em estado bem cuidado, anel no dedo anular, o que induzia a um casamento. O mais interessante era ver o relógio vagabundo que usava no pulso. O estágio de putrefação era inicial, o que indicava que não havia muito tempo a cisão. O sangue havia coagulado em quase toda a sua totalidade, o que indicava que também não era tão recente a separação. Restou apenas desligar o walk man e guardar aquela quantidade de tendões, metatarsos e carnes dentro da sacola no qual se encontravam dois pães franceses. Com um pedaço de jornal envolveu delicadamente a mão e enfim pode guardá-la.
Pensava agora no resto maneta que nesse instante tentava se lembrar onde havia esquecido a mão. Ou então, no pobre coitado que tivera a mão arrancada e jogada na rua e por azar acabara indo procurar em outra praça. Teria que encontrar o resto, jurara que entregaria a mão e faria questão de dizer que tudo estava lá do mesmo jeito que fora encontrado. Relógio barato no pulso, anel no dedo, pêlos loiros pela mão. Mas antes era preciso uma limpeza, pois não entregaria a mão naquele estado ao seu resto. Na pia de casa, uma quantidade abundante de água percorria todos os meandros da mão enquanto uma escovinha juntamente com sabão era responsável pelo trabalho de tirar os mucos e máculas da mão. Com a toalha enxugara cuidadosamente cada canto para que não houvesse prejuízo maior para aquela pobre parte desprovida de corpo. Com uma colônia antiga trazida da Europa pela tia, perfumou a mão. Poderia ser acusado de muitas coisas, menos pela falta de asseio. O sangue era também responsável pela condução de água e nutrientes à pele. A falta dele trazia consigo o ressecamento epidérmico, mas nada que um bom creme resolvesse. No armário do banheiro da esposa achara um hidratante resolvedor do problema, logo ele que sempre pensara na inutilidade de cremes, protetores-solares e afins. Uma última escovada nas unhas e agora sim, a mão estava um verdadeiro capricho. Dava gosto de ver o quanto estava limpa e sentir o quanto cheirava bem.
Faltavam agora somente relógio e aliança - sim, haveria mesmo de ser casado, com certeza aquilo era uma aliança banhada a ouro. Fora até a gaveta e pegara novas baterias e as trocou com as que estavam no relógio, já desgastadas pelo tempo. No caixa de ferramentas estava o lustrador de metais. Pingara duas gotas em um pedaço de pano velho e com calma reluzia o objeto anular. Agora sim, após devidamente recolocados, a mão estava pronta.
Precisava agora de tomar um banho e almoçar, antes de procurar o resto. Para maior conforto, deixara a mão dentro da geladeira, pois o calor estava latente. Enquanto se deleitava debaixo da ducha, pensava em tudo o que acontecera. Imaginava o quanto bonita estava a mão, como estava bem cuidada, meu Deus. Sorria contente só de lembrar dos músculos ainda bem interlaçados aos tendões. E as unhas? Como estavam bem feitas, enquanto a pele parecia uma seda. A delicadeza e beleza da mão faziam até mesmo com que o relógio e anel parecessem coisa chique, de classe. Era com certeza uma grande mão, não havia dúvida disso.
Vestia-se enquanto pensava se realmente era necessária devolução da pequena. Era quase certo que o resto poderia nessa hora nem estar mais por ai. E resto poderia ter perdido mais partes e mais restos poderiam ter se formado. Quem sabe agora qualquer um poderia guardar um pé, uma perna, uma orelha? Se o resto realmente gostasse da mão já teria procurado. Provavelmente sofria maus tratos. E quanto parecia estar feliz dentro da geladeira, fresca, úmida, cheia de cuidados. Não seria justo privá-la de tudo isso agora e condená-la novamente à estupidez de seu resto. O melhor seria mantê-la junto de si, com conforto, limpeza e devidos cuidados. Resolvera não mais procurar o resto. Que o resto se danasse, que se não cuidara bem, que agora sofras as devidas conseqüências. Apostava que nem falta devia fazer nesse instante. Apostava que era até um alívio para o resto, menos uma coisa com que se preocupar, para cuidar. Fora até a geladeira e tirara de dentro a mão. Ligou a televisão e juntos assistiram um programa qualquer. Acomodara a mão em uma almofada macia. Rira bastante, como era boa a presença da mão. À noite, ajeitara como cama uma escrivaninha.
No outro dia, saíra para correr. Walk man com Cole Porter e sacolinha com mão. Ao passar pelo mesmo quarteirão, observara outro corpo deitado ali. Era um braço separado do resto, entretando sem mão. Enquanto continuara a correr, imaginara o quanto cruel seria alguém deixar caído um braço no meio do asfalto. Resolvera retornar ao local.
Pensava agora no resto maneta que nesse instante tentava se lembrar onde havia esquecido a mão. Ou então, no pobre coitado que tivera a mão arrancada e jogada na rua e por azar acabara indo procurar em outra praça. Teria que encontrar o resto, jurara que entregaria a mão e faria questão de dizer que tudo estava lá do mesmo jeito que fora encontrado. Relógio barato no pulso, anel no dedo, pêlos loiros pela mão. Mas antes era preciso uma limpeza, pois não entregaria a mão naquele estado ao seu resto. Na pia de casa, uma quantidade abundante de água percorria todos os meandros da mão enquanto uma escovinha juntamente com sabão era responsável pelo trabalho de tirar os mucos e máculas da mão. Com a toalha enxugara cuidadosamente cada canto para que não houvesse prejuízo maior para aquela pobre parte desprovida de corpo. Com uma colônia antiga trazida da Europa pela tia, perfumou a mão. Poderia ser acusado de muitas coisas, menos pela falta de asseio. O sangue era também responsável pela condução de água e nutrientes à pele. A falta dele trazia consigo o ressecamento epidérmico, mas nada que um bom creme resolvesse. No armário do banheiro da esposa achara um hidratante resolvedor do problema, logo ele que sempre pensara na inutilidade de cremes, protetores-solares e afins. Uma última escovada nas unhas e agora sim, a mão estava um verdadeiro capricho. Dava gosto de ver o quanto estava limpa e sentir o quanto cheirava bem.
Faltavam agora somente relógio e aliança - sim, haveria mesmo de ser casado, com certeza aquilo era uma aliança banhada a ouro. Fora até a gaveta e pegara novas baterias e as trocou com as que estavam no relógio, já desgastadas pelo tempo. No caixa de ferramentas estava o lustrador de metais. Pingara duas gotas em um pedaço de pano velho e com calma reluzia o objeto anular. Agora sim, após devidamente recolocados, a mão estava pronta.
Precisava agora de tomar um banho e almoçar, antes de procurar o resto. Para maior conforto, deixara a mão dentro da geladeira, pois o calor estava latente. Enquanto se deleitava debaixo da ducha, pensava em tudo o que acontecera. Imaginava o quanto bonita estava a mão, como estava bem cuidada, meu Deus. Sorria contente só de lembrar dos músculos ainda bem interlaçados aos tendões. E as unhas? Como estavam bem feitas, enquanto a pele parecia uma seda. A delicadeza e beleza da mão faziam até mesmo com que o relógio e anel parecessem coisa chique, de classe. Era com certeza uma grande mão, não havia dúvida disso.
Vestia-se enquanto pensava se realmente era necessária devolução da pequena. Era quase certo que o resto poderia nessa hora nem estar mais por ai. E resto poderia ter perdido mais partes e mais restos poderiam ter se formado. Quem sabe agora qualquer um poderia guardar um pé, uma perna, uma orelha? Se o resto realmente gostasse da mão já teria procurado. Provavelmente sofria maus tratos. E quanto parecia estar feliz dentro da geladeira, fresca, úmida, cheia de cuidados. Não seria justo privá-la de tudo isso agora e condená-la novamente à estupidez de seu resto. O melhor seria mantê-la junto de si, com conforto, limpeza e devidos cuidados. Resolvera não mais procurar o resto. Que o resto se danasse, que se não cuidara bem, que agora sofras as devidas conseqüências. Apostava que nem falta devia fazer nesse instante. Apostava que era até um alívio para o resto, menos uma coisa com que se preocupar, para cuidar. Fora até a geladeira e tirara de dentro a mão. Ligou a televisão e juntos assistiram um programa qualquer. Acomodara a mão em uma almofada macia. Rira bastante, como era boa a presença da mão. À noite, ajeitara como cama uma escrivaninha.
No outro dia, saíra para correr. Walk man com Cole Porter e sacolinha com mão. Ao passar pelo mesmo quarteirão, observara outro corpo deitado ali. Era um braço separado do resto, entretando sem mão. Enquanto continuara a correr, imaginara o quanto cruel seria alguém deixar caído um braço no meio do asfalto. Resolvera retornar ao local.
1 Comments:
Aprendi muito
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