Monday, December 10, 2007

Conto dentário

E sentia o dente amolecer a cada dia, como podia aquilo, já não havia os de leite, o último havia sido arrancado por Doutor Assumpção em uma sexta qualquer de anos atrás. Mas estava mole, prendia-se sutilmente em uma raiz de unidade tênue, se equilibrava junto a toda a arcada, mas sentia que não ficaria muito tempo entre todos aqueles dentinhos felizes. Bye bye, dizia a todos com seu sotaque de nova-iorquino que pensava ter, mas era na verdade baiano, nunca havia sentido o hálito gringo. E remexia em frente o espelho, abria o máximo possível a bocarra, escancarava, entortava, o que seria isso, meu pai, perder um dente nessa idade, tratamento de canal sempre fora sofrimento eterno, batia na memória. E lia Shakespeare em quadrinhos na sala de espera e assim como Hamlet, também fazia monólogos dialogarem com entes, entidades que invadiam e só iam parar no bojo do dentista, junto ao borrão rouge que escorria, o seu quinhão de sofrimento na infância, perder um dente na idade pequena é o aparecimento do novo - abandonar a fragilidade do dente de lente para ver que a vida é mais dificil, que nossos molares precisam trabalhar mais e que precisamos de incisivos e caninos mais fortes para poder encarar o futuro. Mas agora a rigidez dá lugar ao atrito renitente, ao áspero que vem do pontiagudo da raiz e que arranha a língua - por mais que se saiba que não se deve passar a língua lá a coisa se torna automática, vai-se dilapidando carne, músculo, o gosto de hemoglobina na boca (pelo menos é ferro, mas ferro já existente), são vários os casos de anemia na família. E é corda bamba mesmo, o fio da navalha, a irritante certeza de que tudo um dia cai e de que tudo, mesmo não se querendo, não vai durar para sempre. Procura-se dentro, órgão por órgão, mas não se encontra nada - o grito interior é ao mesmo tempo o mais silencioso e o mais preciso. E vê que nada adiantou tomar leitinho da mamãe, o dente cai um dia, como caem as folhas, o mundo futuro é dos desdentados, o jeito é sorrir. Enquanto cutucava sentia a pontada verde, fibrosa, sadia. O dente espirrou na pia, o sangue inundou o lavabo, jorrou até que as gotículas chegassem a estante de mármore, branca e agora com respingos grenás, nem tão feio ficou, pois essa cor costuma ser para sempre, sangrar nunca é em vão, é marcante, experiência ortodoxa. Ao pedaço de osso restava lamentar-se por ter sido fraco. No lugar nascia um pé de figo, já se via a pontinha saindo, saindo. Enquanto saía, vencia as barreiras, raiz, boca, pele, chão. Parecia que iria realmente necrosar, ficava roxo, mas a figueira era esplendorosa e os figos maduros cheiravam bem. O grande problema era o incômodo de ter de andar com toda aquela quantidade exímia de madeira, respirar era difícil, comer, só por meio de uma intervenção cirúrgica ou então cortando de vez a árvore. Mas se apegava cada dia mais, queria ver desabrochar as flores, colher frutos, ver as novas folhas. Um mutualismo bizarro que duraria enquanto pelos vasos sanguíneos circulasse seiva, mas os homens ainda têm muito o que aprender com a terra, ainda são muito inférteis, mesmo se aguados todas as manhãs.

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