Friday, August 25, 2006

Os relógios

Não se contentando com um relógio apenas, Gaspar te logo dois em sua sala minúscula. O ambiente claustrofóbico conferia uma acústica formidável para que esses dois relógios trabalhassem. As batidas descompassadas pareciam-se com dois remadores em uma competição. Cambridge versus Oxford talvez. Mas a importância disso tudo era mínima para Gaspar. Ele necessitava apenas cumprir sua labuta diária. Os vocábulos e verbetes eram suas ferramentas. Usar bem essas ferramentas bastar-se-ia para obtenção de êxito e também para fuga das cobranças intermináveis, irrevogáveis e insubordináveis do chefe.

É bem verdade que Gaspar nunca fora um jornalista brilhante, mas também não era um qualquer. Tinha lá seus lampejos e às vezes era cumprimentado pelos colegas de jornal. Mas há dias em que tudo parece conspirar. Os inimigos não são somente aqueles dois relógios atléticos e remadores. Um dia como esse é o que se pode chamar de “Conspiração Mundial Anti-texto”. Gaspar nomeava o dia como se o mesmo fosse um partido político ou uma teoria física. Nesses dias o texto é natimorto.

Gaspar visita a geladeira pela terceira vez e se serve de um suco de laranja de dois dias atrás enquanto degusta uma fatia de mortadela enrolada em uma mussarela. Há muita gente que pensa que os neurônios são acionados nesses instantes em que o estômago prepara-se para ser engambelado. É como se as enzimas em trabalho em relação às células da massa encefálica. Pepsinas e tripsinas dando o duro para que neurônios usufruam seus respectivos ócios criativos. Mas a boa ventura não aventava para Gaspar naquela noite. Os dois relógios rivais não deixavam com que o pobre homem se esquecesse que já eram duas horas e onze minutos da madrugada. Gaspar se lembrara que não dormia cerca de trinta e sete horas e que o melhor seria beber mais uma xícara de café. Ele se encaminha até a garrafa térmica que ganhara do compadre Batista na época dos acampamentos. Bons tempos aquele. O homem vai sorvendo o líquido preto enquanto as reminiscências transitam em seu pensamento. O dèja vu é interrompido pela lembrança de que o trabalho gigantesco ainda era mínimo.

Fortuitamente, o jornalista fuma o último cigarro do maço. Mais um problema para aquela noite aparentemente interminável. Os relógios continuam a se degladiar enquanto os ponteiros possuem uma diferença de alguns remotos segundos, sendo que esses eram os grandes responsáveis por aquela batalha mecânica. Gaspar se senta na mesa e retorna á datilografia naquela velha máquina de escrever que forçosamente poderia até ser considera dos tempos de Gutemberg. Exageros à parte, em um dado momento, uma luz celestial parece adentrar a massa cinzenta do pobre ser humano em questão. Palavras surgem, frases são compostas tais quais uma sinfonia, o texto incorpora-se e até os relógios se atém paralisados. Efêmera esperança, o papel há pouco vivo jaz morto no cemitério das palavras aspirantes, ou seja, a lixeira metálica do flanco direito da sala. Inconformado, o rapaz decide dar uma volta para comprar cigarros. Sua ansiedade é tamanha, que o mesmo acaba tropeçando em um dos degraus da escadaria do prédio. Ele segue até um bar escuro na esquina e pede um maço de tabacos. Acaba tomando uma coca-cola enquanto a estação de rádio alterna desde acordes de um velho blues até rocks da década de 1970. As músicas acionam novamente as lembranças juvenis e Gaspar se lembra das táticas e conquista, bem como das peladas de sábado no clube. Decide-se a beber uma cerveja para se distanciar do cansaço. Após uma sucessão de melodias e cevada, Gaspar se encontra totalmente envolvido por uma empolgação grandiosa. Pede a conta ao garçom e deixa o restante da cerveja para dois moleques que permaneciam no bar durante toda aquela noite de emoções e sentimentos antagônicos.

Gaspar caminha até seu apartamento e encontra séria dificuldade para subir os degraus denominados por ele de insolentes. A junção entre insônia crônica e álcool em demasia pode ser muitas vezes catastrófica. Ao entrar pela sala escura, encaminha-se até a máquina e tenta digitar alguma coisa, mas é obstruído por forças nada ocultas. O homem retira várias folhas que estavam sobre a mesinha e as joga na lixeira e essa transborda pelo excesso de celulose. Os relógios já marcam quatro horas e doze. Ponteiros infelizes. Gaspar decide abortar todo o trabalho. Arrumaria qualquer desculpa pela manhã. Iria dizer que teve problemas de saúde na família, assalto, ameaça de guerra, qualquer porcaria poderia servir. Insone e desfigurado, o homem vai até o rádio na estante. Aquieta-se apenas quando consegue localizar a mesma estação do bar. O anti-herói começa a dançar da mesma forma que John Travolta em Pulp Fiction. A preocupação é dissolvida na canção de Jerry Lee Lewis. Gaspar canta enquanto anda até os relógios da parede. Contempla a ação mecânica dos dois objetos durante um certo tempo. Retira o relógio posicionado no lado esquerdo. Caminha até a janela, ergue a janela com vigor e defenestra o conjunto de engrenagens funcionais das horas. Em seguida, retorna á mesma parede, retira o segundo relógio, e sem exitar lança o mesmo ao encontro do chão. O barulho é inquietante. Peças ficam espalhadas pelo chão. Após a definição dos atos, Gaspar desliga o rádio, dirigi-se até a poltrona carcomida do canto e se joga sem compaixão. Faz-se um silêncio catártico. A paz reina absoluta. Às cinco horas e dez de um relógio qualquer, Gaspar jaz inconsciente.