Tuesday, September 12, 2006

Desfocado

José María Infante observava o trânsito pesado da esquina onde se encontrava extático. Nascera em Cuba e possuía o mesmo sobrenome do grande escritor cubano do qual provavelmente nunca lera uma única linha. Sonhara em desembarcar em Miami em busca de uma vida menos miserável e inexorável do que a que tinha na ilha comunista de barbas resistentes. Acabara desaguado em São Paulo por uma distração brutal. Nascido no dia da Revolução, não se orgulhava muito de seu aniversário.

Os carros soltam a fumaça andarilha que se confunde junto ao olhar de sangue de José María. Serão predestinações de Santo Agostinho?, o pensamento é recorrente e a visão translúcida de toda aquela maquinaria que cruza o asfalto quente envolvido pela massa de concreto, como se tudo aquilo não passasse de um pesadelo do qual não era possível acordar. A temperatura quente lembrava Havana, tanta pobreza como as que já vi na terra natal, o fluxo cerebral transcendente e dotado de um niilismo que lembrava Schopenhauer.

O sinal oscila dos tons de verde de não esperança ao vermelho do sangue fervente que corre pelas veias. Cada artéria dobra seu volume num fluxo anticlímax, sendo o coração um mero sofisma de uma vida ingrata e besta. Por que sair de casa pra isso?, nem mesmo o bebê que atravessa a rua é capaz de mover um músculo sequer daquele homem petrificado por uma Medusa dos trópicos. Estático e anestesiado, ele fica por mais tempo ainda, não se importando se o vendedor de amendoim faz comentários estúpidos daquela situação esdrúxula da qual ele, José María Infante, era o principal ator.

Os minutos voam no relógio eletrônico e o termômetro despenca como se estivesse caindo de um precipício, a garoa de sempre cai, sem conseguir lavar a alma, de arrancar os pecados daquele corpo pútrido e de sequer tirar as lágrimas e as magoas dos olhos manchados por sangue, raiva e arrependimento. Pudesse ter agora uma faca, ou cicuta para por fim aquela avalanche de erros em forma de vida (ou morte, por que não?). Porém, era incapaz de movimentar qualquer parte do corpo, como se esses estivessem destronados de existência. Não podia continuar naquela posição, algo urgia em ser feito, a chuva escorria pelo corpo dando marcas à roupa de cambraia que Infante vestia. Suor, gotas e sangue se uniam em uma mistura adiposa e purulenta.

Resolve dar o primeiro passo, o que fazer agora?, Ameaça dar o segundo, recua, mas tal qual uma figura ruborizada, deixa para trás mais um pedaço de passeio. Os automóveis percorrem a pista como gafanhotos na destruição de uma plantação de trigo. José María já se encontra em território inimigo, os olhos vermelhos como o semáforo dos passageiros. O som das buzinas se mescla aos raps do vendedor de cedês e aos acordes impecavelmente corretos da nona de Beethoven ouvida em um dos veículos cujos vidros são tão negros quanto o cubano que se arremessa no meio dos carros. O bailado é belíssimo, e no vai-e-vem do trânsito, José María compõe a sua maior obra em vida, pois aqueles passos não mais eram que os passos de uma dança sublime. É como se o mundo ficasse em câmera lenta por um milionésimo de tempo. Em dado instante esse tempo pára, José María respira pela primeira vez, mas esse tempo não tem tanta força para segurar todo aquele volume de pneus, metais e vidro. O barulho é ensurdecedor, capaz de parar o movimento paulista de carros, pessoas e sons. O silêncio é atingido por um breve momento, como se todos quisessem escutar pela última vez o suspiro daquele anti-herói banhado em liquido rubro.