Saturday, December 29, 2007

bad and old reveillon

O melhor do reveillon é que, como tudo na vida, ele acaba. Não há nada mais desagradável que um monte de pseudo-conhecidos ficarem me abraçando, todos vestidos de branco, e me desejando um feliz ano novo sendo que nos próximos doze meses eu sequer vou me lembrar dessa pessoa, ela não faz parte de minha vida e sinceramente nem quero que faça. E reveillon é sempre a mesma coisa, salgadinhos gordurosos na mesa, champagne vagabunda do lado, pessoas desagradáveis te cercando, tio bêbado caído no chão, fogos de artifícios que arrebentam no céu e fazem um barulho que me faz desejar ficar na Praça Sete ao lado dos jogadores de damas e dos caras que gritam o tempo todo. O começo é sempre igual, a bandinha ordinária com um nome estilo "Os maiorais do Pedaço" (desconfie sempre dessas alcunhas, fuja disso logo) fala que vai tocar uma musiquinha mais calma antes da meia-noite. Sempre que escuto musiquinha calma sei logo que vem por aí Kenny G. Sempre que ouço Kenny G, não sei o porquê, me dá uma vontade enorme de ver o parente bêbado caído no chão ser tragado pelo mesmo. E o "adeus ano velho feliz ano novo" da meia-noite funciona como uma bigorna lançada no estômago, só que, no caso da passagem de ano, infelizmente não me levam para um hospital mais próximo. Como tudo pode piorar (e vai piorar, claro) começa logo um carnaval, Miguelina em seu vestidos apertado sobe sob as cadeiras, velhos idiotas começam a dançar de forma lamentável e quando você olha para o lado você logo nota que está cercado, uma invasão deles e a única chance existente é a de torcer para que uma chuva e raios acabe com a luz do local e você possa, enfim, sair dali (mas claro que isso nunca acontece). O jeito é me sentar e esperar a ajuda dos céus, mas claro, ela não vem, quem vem é uma menina de vestido amarelo e vermelho que vai direto na cadeira ao meu lado, começa a mexer na sandália (que é claro arrebentou de tanto pular) com o pretexto de conversar: "sabia que amarelo é riqueza e vermelho é amor?", daí olho para o lado, tento achar certa graciosidade naquilo quando na verdade a única coisa que me vem à cabeça é "você vai dar pra mim hoje à noite?". E quando estou próximo de perguntar isso logo de uma vez, recuo ao notar que o nariz da mocinha lembra muito o de Dona Romilda que durante muitos anos me perseguiu em sonhos em que ela e Mao me jogavam dentro de uma caçarola e me serviam a Steve Wonder, que parecia gostar da situação. A moçoila nota meu entusiasmo e fala que vai ao banheiro e já volta. Sob o risco dela voltar, prefiro não arriscar e vou até bem próximo da janela. Como quase não dirijo e não gosto de dar dinheiro a taxista (na minha estatistica 33% são ninfomaníacos e 95%, muito pior que isso, não calam a boca), preciso esperar por uma carona que sempre vem de alguém que mora do lado da minha casa e que com certeza odeio conversar. No carro ele vai falar sobre seus dias na academia e sobre Mastercard e Senhor dos anéis. Quando ele começa a mencionar os acúmulos de créditos no cartão, sempre vem na cabeça uma musiquinha do Bernard Herrmann seguida de Rod Stewart (para o final trash do pobre coitado). Ao me deixar próximo de casa, sempre solta: "você tem meu celular, me liga qualquer dia desses para gente tomar uma umas biritas" e eu logo respondo: "só se você for beber sicuta". Ele não entende e começa a rir enquanto arranca o carro com todo o direito que o motor lhe oferece no que tange fazer barulho e mostrar que qualquer imbecil pode ter automóvel, brou.
Na minha cama, posso imaginar meu melhor reveillon: romenas semi-nuas, dentre elas uma ruivinha garbosa, dançam à minha volta ao som do CD com a trilha de Ferris Bueller's Day Off. No bar, Courtney Cox e Shakira - só de biquini bem cavado - preparam meus drinks enquanto Cid Moreira, ao meu lado, fica declamando Baudelaire no original. As romenas começam o bacanal, Cox e Shakira observam (não sei por quanto tempo), alguns samurais se degladiam enquanto Bono Vox engasga cantando New Year's Day.

Thursday, December 27, 2007

Polar

Poesia polar.
Poeta de gelo.
Arquétipo do congelamento
se não de palavras
de gestos.
Se a métrica falha
a rima derrete
no final somente água

mero riacho de palavras
ou de nada
dia quente e anseio por uma coca-cola
se possível
gelada.

Tuesday, December 25, 2007

estilhaços

o espelho intacto antes do impacto, ao som de The Blasters, dança regada a estoicismo de frente para o nobre retalho reflexivo, reflexo borrão, quinhão de luz que penetra a redoma, resga de fótons invasores que iluminam o não-iluminável. e as besteiras que se pensa nessa hora, cruzamentos super ritmados do risco de quebrar e os sete anos de má-ventura que acompanharão insignificante criatura que sou eu de frente para objeto que em poucos minutos se tornaria cortante. e o inseto que bate na janela, mistérios ao modo Chesterton, alimentando de livros que só serviram para tirar horas de sono, sementes de conhecimentos que não se aplicam, ou se se aplicados metamorfoseiam em livros não publicados. e de que vale o tempo perdido se ele já se perdeu? serve para causar a insônia a qual me encontro submisso desde os treze. o que quero agora é travesseiro, nem que seja para arremessá-lo ao encontro do espelho, que, por sua vez, se espatifará e trará junto sete anos de azar, que significam não mais dormir.

Tuesday, December 11, 2007

Dona Maria Quitéria

Dona Maria Quitéria, que disfarçava a corcunda com o paletó de lã, era nossa professora de história na quarta série. Ela se parecia muito com o Tostão - o que jogou no Cruzeiro -, ainda mais por sempre afirmar que havia sido um bom meio-de-campo nos seus tempos de colégio interno. Ela realmente demonstrava uma certa malevolência de quem sabia conduzir bem os ataques do time, demonstrava muito fervor na Irmandade Com Cristo e em Cristo, além de carregar na bolsa um retratinho de Jesus com óculos Ray-Ban, adquirido em Feira de Santana na época da ditadura.
Dona Maria Quitéria, já no início de cada aula, nos fazia rezar o "Pai Nosso" em latim. Depois ligava o toca-fitas baixinho, sempre tocando Sex Pistols - ajudava a fazer o horário fluir. Nos seus 62 anos de vida, a nobre senhora já sabia e afirmava que chineses fizeram comércio ilegal com a colônia de Portugal.
- Chineses entravam nisso aqui, faziam maiôs de cocô e colocavam nas índias, criaram escola de samba, apuração final e um monte de sambas-enredo boçais - Dona Maria Quitéria em cima da mesa, sambando ao som da trilha sonora de Ferris Bueller Day Off.
- Mas com a chegada do pessoal da Islândia, a coisa desandou, como todos sabem (por conta da carta de Pero Vaz de Caminha), os chineses encolhem na presença de islandeses - sempre concluía, acendendo um charuto cubano e assoprando a fumaça na cara da mulata Alessandra, que vendia órgãos humanos para sustentar suas fantasias de carnaval. Valeu a pena, hoje é madrinha da bateria em Niterói.
Mas era no final das aulas que ela realmente se superava, pegava uma velha fita e colocava no VHS. Nela uma velha historinha pornográfica russa, dos tempos do Czar Nicolau. Ruivas de seios fartos, bem maquiadas, morenas arrebitadas, lençóis que voam em direção à câmera. Um czar com a cara do Espiridião Amin entra no meio da esbórnia e se apodera, se esbanja das meninas soviéticas. Muita gente da sala raspou a cabeça na época e dorminaram Madame Gessilda, bibliotecária.
No final da aula, Dona Maria Quitéria distribuía calendários de muié pelada, eram japonesas, tchecas, alagoanas. Dava inclusive para as meninas da turma, por questão de igualdade. Sempre primara pelos princípios da igualdade e da decência. Ao passar pela saída, ajeitava o paletó, segurava a saia e com uma taça de martini fazia um brinde ao quadro da Santa Ceia localizado no pátio da escola.
Guardo meus calendários até hoje, como Dona Maria Quitéria sempre pediu.

Monday, December 10, 2007

Conto dentário

E sentia o dente amolecer a cada dia, como podia aquilo, já não havia os de leite, o último havia sido arrancado por Doutor Assumpção em uma sexta qualquer de anos atrás. Mas estava mole, prendia-se sutilmente em uma raiz de unidade tênue, se equilibrava junto a toda a arcada, mas sentia que não ficaria muito tempo entre todos aqueles dentinhos felizes. Bye bye, dizia a todos com seu sotaque de nova-iorquino que pensava ter, mas era na verdade baiano, nunca havia sentido o hálito gringo. E remexia em frente o espelho, abria o máximo possível a bocarra, escancarava, entortava, o que seria isso, meu pai, perder um dente nessa idade, tratamento de canal sempre fora sofrimento eterno, batia na memória. E lia Shakespeare em quadrinhos na sala de espera e assim como Hamlet, também fazia monólogos dialogarem com entes, entidades que invadiam e só iam parar no bojo do dentista, junto ao borrão rouge que escorria, o seu quinhão de sofrimento na infância, perder um dente na idade pequena é o aparecimento do novo - abandonar a fragilidade do dente de lente para ver que a vida é mais dificil, que nossos molares precisam trabalhar mais e que precisamos de incisivos e caninos mais fortes para poder encarar o futuro. Mas agora a rigidez dá lugar ao atrito renitente, ao áspero que vem do pontiagudo da raiz e que arranha a língua - por mais que se saiba que não se deve passar a língua lá a coisa se torna automática, vai-se dilapidando carne, músculo, o gosto de hemoglobina na boca (pelo menos é ferro, mas ferro já existente), são vários os casos de anemia na família. E é corda bamba mesmo, o fio da navalha, a irritante certeza de que tudo um dia cai e de que tudo, mesmo não se querendo, não vai durar para sempre. Procura-se dentro, órgão por órgão, mas não se encontra nada - o grito interior é ao mesmo tempo o mais silencioso e o mais preciso. E vê que nada adiantou tomar leitinho da mamãe, o dente cai um dia, como caem as folhas, o mundo futuro é dos desdentados, o jeito é sorrir. Enquanto cutucava sentia a pontada verde, fibrosa, sadia. O dente espirrou na pia, o sangue inundou o lavabo, jorrou até que as gotículas chegassem a estante de mármore, branca e agora com respingos grenás, nem tão feio ficou, pois essa cor costuma ser para sempre, sangrar nunca é em vão, é marcante, experiência ortodoxa. Ao pedaço de osso restava lamentar-se por ter sido fraco. No lugar nascia um pé de figo, já se via a pontinha saindo, saindo. Enquanto saía, vencia as barreiras, raiz, boca, pele, chão. Parecia que iria realmente necrosar, ficava roxo, mas a figueira era esplendorosa e os figos maduros cheiravam bem. O grande problema era o incômodo de ter de andar com toda aquela quantidade exímia de madeira, respirar era difícil, comer, só por meio de uma intervenção cirúrgica ou então cortando de vez a árvore. Mas se apegava cada dia mais, queria ver desabrochar as flores, colher frutos, ver as novas folhas. Um mutualismo bizarro que duraria enquanto pelos vasos sanguíneos circulasse seiva, mas os homens ainda têm muito o que aprender com a terra, ainda são muito inférteis, mesmo se aguados todas as manhãs.

Thursday, December 06, 2007

Estamos cercados, ilhados

Há várias formas de se descobrir um idiota e basta com que ele fale dez segundos para ficar nítido o quanto seu projeto de vida se resume a inutilidade de comentários e sua existência por si só já pode ser motivo para mau-humor. O idiota nunca se limita a falar apenas dez segundos, em geral abre a boca inúmeras vezes, expõe suas bobagens a todos, conversa alto, se agita e faz de tudo para se apresentar. O jogo de cena do idiota rude é o pior, ele faz questão de se mostrar o despreocupado, o rebelde, cospe, arrota, pauta toda sua narrativa infame com uma quantidade monumental de baixo calão, inutilidade colossal de palavras que não gostaria de escutar, mas que sou obrigado a perceber adentrar meus ouvidos a cada dia. E o idiota clássico se acha o máximo, super engraçado, o brincalhão, o fanfarrão, quando na verdade melhor seria se ele bebesse uma dose de martini com estricnina na primeira esquina. Alguém jogando a cereja dentro da taça e o vendo levar o nobre cálice até os lábios para que o líquido descesse garganta abaixo, bye bye, bird, tudo ao som da trilha principal de Patricinhas de Beverly Hills. E o idiota só iria tomar um susto - e continuar sendo o mesmo idiota de sempre. E vários Rolls-Royces de outros idiotas saíriam de faróis acesos pelas ruas da cidade em martírio, mas acabariam todos engolidos pela terra que um dia ainda irá comer meus olhos. Mas não devemos pensar que os idiotas são de todos ruins não, pelo contrário, me fazem confirmar que sou dos bons (ou menos pior), o mundo tem salvação, na cabeça do idiota - na minha ele está cercado deles, são os mesmos idiotas que jogam a casca de banana no chão, falam de cartões telefônicos, adoram curtir um som maneiro e fazem da boite o seu espaço, em seu estado neandertal. Os biltres nos cercam, eu os observo da minha janela e quando saio de casa eles insistem em sentar do meu lado, tentar comentar X men, posar de bad boy, quando, na verdade, mau mesmo é o cérebro que ele pensa ostentar na caixa craniana. Nobre ilusão!